O contrabando é uma prática eminentemente geográfica, podendo ser descrito como o comércio ilícito baseado nas diferenças – de preço, qualidade e disponibilidade de mercadorias – geradas pelas barreiras aduaneiras associadas à delimitação dos Estados-Nação. Esse tipo de comércio internacional ilegal exige de seus agentes o conhecimento da geografia aplicada da fronteira, aprendida na experiência da condição fronteiriça. Esta tese coloca bases metodológicas para o estudo da geografia dos contrabandistas na(s) cidade(s) de Santana do Livramento (Brasil) – Rivera (Uruguai). Seu objetivo é explorar as práticas dos contrabandistas naquele lugar, abordando a dimensão cotidiana da fronteira internacional e estabelecendo bases para um estudo geográfico do contrabando. Nesta análise, partimos da literatura de fronteira e dos contos de contrabando, representações textuais em circulação na região, dentro da Comarca do Pampa, onde o contrabandista figura como um personagem tradicional, depositário de verdades locais. Passamos ao exame da história e das teorias sobre a fronteira, que mostraram que a intensificação do povoamento e da urbanização do limite deveu-se às iniciativas estatais de demarcação dos territórios nacionais. Ainda assim, os contatos entre populações, línguas e costumes geraram uma cultura local transnacional, como verificamos no trabalho de campo, atento à tradução cultural: compreender o vocabulário específico à prática e ao lugar foi requisito para acessar representações e sentidos locais. Articulamos representações textuais de origem geográfica e social variada e de diferentes gêneros através de uma abordagem atenta à geografia dos pensamentos colocados em relação. Produzimos uma cartografia de base qualitativa, enfocando especialmente os contrabandistas de pequenos volumes, os bagayeros. Identificamos diferentes escalas no contrabando em Santana do Livramento-Rivera: o contrabando cotidiano; o bagayo; o descaminho de produtos dos free shops; o abigeato; além de formas envolvendo grandes volumes, valores e distâncias. Quanto ao contrabandista, podemos classificá-lo pelo artigo e o volume negociado; conforme a origem e o destino da mercadoria (rural ou urbano, do ou para o Brasil, Uruguai ou terceiros países); segundo a tradição da prática (como no caso do bagayo e abigeato; o contrabando de agrotóxicos, de CDs ou de equipamentos de informática como modalidades emergentes); conforme as contravenções implicadas (elidir impostos; passar mercadorias proibidas; subornar; coagir; atentar contra o ambiente; matar); conforme a rede mobilizada etc. Verificamos que a relação com a aduana oscila entre conivência e punições legais. Identificamos que os armazéns, depósitos de lã, couro, madeira ou de produtos da exportação indireta, as paradas de ônibus e outras materializações do comércio transfronteiriço na(s) cidade(s) se organizam em dois eixos: 1.ao longo da fronteira e 2.nas proximidades das rodovias para Porto Alegre ou para Montevidéu e o oeste do Uruguai. Concluímos que o contrabando organiza lugares e é absolutamente estrutural nessa sociedade, no abastecimento e no sustento das pessoas, sendo visto mais como trabalho do que como delito, realizando-se através das redes de solidariedade indispensáveis à sua execução e legitimação. Além disso, o ethos contrabandista cria uma identidade de lugar, distinguindo outsiders e membros (cúmplices) do grupo, numa territorialidade com extensão, passagens e polarizações em constante atualização, dada a variabilidade dos conteúdos da fronteira.

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Dorfman, A. 2009. Contrabandistas na fronteira gaúcha: escalas geográficas e representações textuais. Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.